O estado de negação é um lugar de refúgio das vítimas, incapazes de se protegerem da verdade senão pela recusa, mais ou menos inconsciente, de a aceitar.
A dor inflige às vítimas os mais básicos instintos de protecção que, supostamente, as protegem dos agressores. O estado de negação nos agressores é toda uma outra realidade que mais não faz do que tentar vender e sistematizar uma mentira "ad aeternum" para os livros de História ou enquanto for conveniente. As declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, no encontro com o seu homólogo ucraniano, Dmytro Kuleba, em Antalia, são chocantes pela forma como fazem ecoar a visão-síntese do conflito contada pelo lado russo: "Não estamos a planear atacar outros países. Nós nem sequer atacamos a Ucrânia". Se este é o discurso oficial da Rússia para o Mundo, na primeira reunião de alto nível após o início da invasão, imaginamos a intoxicação a que o anónimo cidadão russo está a ser sujeito dentro do seu país. As fronteiras da Rússia fecharam-se, as redes sociais e os canais de comunicação não alinhados são encerrados, milhares de oposicionistas à guerra são detidos e o discurso oficial do Estado incorporou um estado de negação absolutamente ofensivo, abusando da mentira no seu esplendor.
Enquanto a Rússia alimenta a teoria de uma operação cirúrgica de desnazificação que devolva a liberdade à Ucrânia e a devolva ao abraço de urso da genética russófila, Sergei Lavrov e Maria Zakharova, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, multiplicam-se em insinuações de guerra para com a União Europeia e a NATO, deixando no ar que os países que estão a fornecer armamento à Ucrânia correm sérios riscos de problemas na aviação civil e outros meios de transporte dentro e fora da Europa. Para um país que não aceita a terminologia de guerra mas que até equaciona um cessar-fogo caso a Ucrânia ceda às suas pretensões, qualquer reminiscência do MH17, abatido em 2014, é já uma memória longínqua.
O espectro de liderança e de necessidade do reforço do poder na NATO que Vladimir Putin entregou de mão beijada aos EUA é apenas isso mesmo, um espectro. Para desespero dos sectores mais conservadores nos EUA, a doutrina oficial da Administração americana passou à China informações fundamentais para a compreensão da presença russa no cerco à Ucrânia, delegando-lhe a capacidade e o poder para ser o grande mediador do conflito. Para Xi Jinping, o tempo não é um problema e a lassidão europeia é um convite. A China pode esperar, mas não se importará de antecipar a sua liderança mundial em meia dúzia de anos. Todas as posições dúbias e ambíguas alimentadas pelo poder chinês assim indicam: o papel de mediador para uma mentira perversa e para uma realidade atroz só pode ser assumido por quem estudou "A arte da guerra" nos bancos de escola. Entretanto, o melhor que se pode desejar é que a lucidez não faça escalar a guerra para o fim de linha químico ou nuclear, que o isolamento e desvalorização do rublo atire 25 anos da economia russa para a proscrição e que, antes que o seu ego feche todas as portas, ainda haja algo que sirva como moeda de troca para Putin. Um estatuto de neutralidade com garantias para a Ucrânia parece ser a única solução imediata. E já nem o poder ucraniano a recusa.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 11 de março de 2021