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O incómodo de Ricciardi

José Maria Ricciardi acha que Mariana Mortágua “devia desaparecer de vez!”. O primo de Ricardo Salgado perdeu a compostura, aparentemente, pelo facto de a Mariana ter dito, numa entrevista televisiva, que alguém na posição de Ricciardi – ex-comissão executiva do BES, ex-presidente do Banco Espírito Santo de Investimento (BESI) e ex-membro do Conselho Superior do Grupo Espírito Santo, e que continuou a receber bónus milionários quando os problemas já eram claros – só não soube das práticas criminosas porque não quis.

No próprio processo, de resto, o nome de Ricciardi aparece referido nalguns dos esquemas de omissão da existência de pagamentos e de ocultação de operações aos órgãos de governo do BES, como foi entretanto sublinhado. Só que a elite financeira não gosta de ser exposta e odeia políticos competentes cujo silêncio não pode comprar. Terão, contudo, de se habituar.

Os crimes em causa no processo do BES, entre maquilhagem de contas, associação criminosa, branqueamento de capitais, são de uma dimensão avassaladora. Não admira, pois, que estejamos também perante um inquérito criminal de uma impressionante extensão, que durou seis anos e envolveu uma equipa multidisciplinar e a cooperação judiciária com autoridades de dez países diferentes. De acordo com o Ministério Público, o produto dos crimes e prejuízos relacionados com os responsáveis agora acusados soma um valor de 11.800 milhões de euros. Quem pagou o prejuízo? Até ver, os clientes lesados do banco e os contribuintes portugueses, que já encheram com os seus impostos uma parte assinalável do buraco criado pelos banqueiros criminosos.

O caso do BES e a teia de empresas e de esquemas que levaram ao colapso do grupo é no entanto, além de um crime tentacular, um verdadeiro retrato do país e de quem manda nele. Está lá a mistura entre o sector financeiro e empresarial, está lá o papel dos escritórios de advogados nestes esquemas de fraude, a centralidade das empresas em offshore para os operacionalizar, a importância dos intermediários e dos facilitadores. E está lá a promiscuidade com o poder político. A confirmação de que a campanha de Cavaco Silva foi financiada com o saco azul de Ricardo Salgado confirma a escala em que se compraram conveniências, favores, simpatias e silêncios.

Esta estrutura de poder, mesmo que estes protagonistas estejam finalmente a ser levados perante a justiça, permanece. Mas se não queremos novos casos, é ela que tem de ser destruída. É preciso fazer com que o crime deixe mesmo de compensar e é preciso erradicar o caldo de cultura que o permite. Para isso, não basta a responsabilização criminal: tem de haver confisco dos bens  de quem comete estes crimes (ou seja, responsabilização patrimonial sob ordem judicial) e tem de haver coragem política para mudar o sistema financeiro e acabar com os offshores, desde logo o da Madeira, que foi plataforma para muitas destas operações. Como os outros membros da grande família que é a elite económica em Portugal, parece que Ricciardi sabe quem, numa questão e na outra, vai causar incómodo e pode fazer a diferença.