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O drink de fim de tarde

A fotografia é dos cabazes da União Audiovisual, que tem estado a recolher bens para distribuir aos trabalhadores das artes e do audiovisual que ficaram não apenas sem trabalho mas também sem uma proteção social que lhes permita sobreviver. Nos sacos estão, entre outras coisas, latas de atum e de salsichas, algumas bolachas, tomate em lata, noodles, arroz, embalagens de Nestum, pacotes de leite, papel higiénico... A legenda da imagem: “uma foto de drink de fim de tarde”. São quase duas centenas de pessoas e famílias apoiadas por este grupo informal.

Não se trata, como alguém sugeriu, de uma embirração dos artistas e dos técnicos com as respostas da Ministra aos problemas do setor. É mesmo a indignação com a sobranceria, a falta de empatia e de conhecimento da vida real que uma tal atitude revela, o modo como, numa declaração, se exprimiu brutalmente o alheamento snob e a separação entre o mundo dos cocktails da elite e a miséria dos que, no mesmo setor, não têm sequer dinheiro para comprar comida.

Já aqui disse, e repito: na cultura, parece que foi tudo mal feito desde o início da pandemia, que expôs dramaticamente o que já estava mal antes. Anúncios atabalhoados de medidas propagandeadas várias vezes sem serem concretizadas, instituições com financiamento público a darem os piores exemplos de desprezo pelos seus trabalhadores (veja-se Casa da Música e Serralves, mas não só), apoios extraordinários transformados numa competição entre candidaturas que excluiu a maioria das pessoas, montantes dos apoios da segurança social abaixo do limiar de pobreza, com atrasos de meses e milhares de indeferimentos, uma incapacidade de resposta pública de emergência só colmatada com a ação solidária do próprio setor. Até hoje, aliás, mesmo medidas que deveriam ter existido desde o início, como a "linha de apoio social aos profissionais das artes", anunciada há cerca de um mês para ser paga “em julho e setembro”, continuam a ser desconhecidas e a não chegar às pessoas.

Esta semana, um conjunto de três organizações representativas dos trabalhadores da cultura – a Associação Portuguesa de Realizadores, a Plateia e o Cena – apresentaram um documento que põe o dedo na ferida da precariedade, da ausência de proteção social (nomeadamente em situações de intermitência) e da falta de orçamento, apontando um caminho para lá da resposta emergencial. As prioridades identificadas são cinco. A necessidade de haver contratos de trabalho, em substituição dos falsos recibos verdes e da transformação de criadores e técnicos em supostos “empresários em nome individual”. A urgência de garantir um efectivo acesso à proteção social, que trate as pessoas como trabalhadores que são: no desemprego, na parentalidade, na doença, na incapacidade de trabalhar em resultado de doença profissional. Um reconhecimento de que existem situações de descontinuidade do emprego, à qual deve corresponder uma continuidade de rendimentos através do subsídio de desemprego, com prazos de garantia e regras compatíveis com trabalhos intermitentes e que contabilizem os períodos de trabalho tendo em conta a especificidade de algumas profissões. A regularização das situações ilegais (mas recorrentes!) de recurso a recibo verde, a contratos precários ou ao outsourcing em situações de necessidades permanentes (sim, também as há na cultura), a começar pelas instituições com financiamento público. E finalmente, em quinto lugar, uma política cultural com investimento público, que sustente os encargos que resultam de um melhor enquadramento dos trabalhadores, seja no financiamento de obras, seja no apoio às estruturas.

Estas propostas estão hoje a ser debatidas com o Governo. Pode ser que, desta feita, em lugar de sacudir a responsabilidade para outros e de desviar o assunto convidando os representantes do setor para o “drink de fim da tarde”, Graça Fonseca se disponha, por uma vez, a comportar-se como Ministra da Cultura.

Artigo publicado em expresso.pt a 1 de agosto de 2020