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A luta antirracista não permite vacilar

No passado sábado, dia 1 de agosto, cerca de 200 pessoas manifestaram-se contra o racismo, na Avenida dos Aliados, no Porto, na sequência do assassinato de Bruno Candé. Ainda nem há um mês a Avenida tinha sido palco de outra manifestação, sob a égide do movimento ‘Black Lives Matter’, no seguimento do assassinato de George Floyd às mãos da polícia, nos Estados Unidos. E também ali, no início de 2020, centenas se juntaram em homenagem e apelo à justiça pela morte de Luís Giovanni. Se no mundo se assiste a uma convulsão antirracista, se no país a luta antirracista se trava dentro de portas na Assembleia da República, no Porto, não será diferente.

Em fevereiro deste ano, na Sessão Anual da Comissão Especial de Descolonização das Nações Unidas, António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), citou a experiência do seu país de origem, Portugal, ao falar dos movimentos de libertação em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique e alertou para o facto de que as mudanças nesse sentido estão em ritmo lento, mesmo sendo 2020 o ano em que as Nações Unidas marcam o último ano da Terceira Década Internacional para Erradicar o Colonialismo. Em junho, Michelle Basselet, a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, considerou a atual violência racial como “legado do comércio de escravos e do colonialismo”, aquando da realização do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, concretamente no contexto de um debate sobre racismo e violência policial que, no seguimento da morte de George Floyd nos Estados Unidos, foi solicitado pelos países africanos que têm feito uma campanha para que as Nações Unidas lancem uma investigação sobre o “racismo sistémico” nesse e noutros países, com o objetivo de “levar à justiça os autores” de atos de violência.

Em 2016, um grupo de associações portuguesas enviou à ONU uma carta que traça um retrato das desigualdades raciais em Portugal em áreas como a educação, a justiça, a violência policial, as condições de vida, o trabalho, a habitação, a saúde ou a cidadania, como forma de demonstrar a cabal necessidade de políticas para comunidades racializadas. Três anos decorridos, em abril de 2019, o cenário apresentado a Michelle Basselet na sua passagem por Portugal não mudou: àqueles dados foram então acrescidas queixas de violações dos direitos humanos em relação a imigrantes mas também a minorias, nomeadamente cidadãos e cidadãs das comunidades ciganas e afrodescendentes, bem como alertas para o facto de não existir um mecanismo eficaz para o combate à discriminação racial.

Finalmente, o European Social Survey – inquérito transnacional de cariz académico já citado pela secretária de Estado da Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, quando, em 2018 (um ano após a entrada em vigor da Lei para a Prevenção, Proibição e Combate à Discriminação), admitiu que “Portugal é um país com manifestações de racismo e de xenofobia”, atentando nomeadamente ao número de queixas recebidas pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) – concluiu, de forma contundente, que mais de 60% dos portugueses manifestam racismo, respondendo afirmativamente a pelo menos uma destas perguntas: ‘há grupos étnicos ou raciais por natureza mais inteligentes?’; ‘há grupos étnicos ou raciais por natureza mais trabalhadores?’; ‘há culturas, por natureza, mais civilizadas que outras?’. São demasiado evidentes os dados e demasiado gritantes os casos concretos a que Portugal tem assistido.

No Porto, se no final de 2018 um deputado municipal eleito pelo movimento Rui Moreira – Porto Nosso Partido era acusado pela CICDR pela prática de discriminação dado o teor racista e xenófobo de declarações proferidas numa publicação numa rede social que abriu espaço a um rol de comentários da mesma natureza, já em fevereiro de 2020 a Assembleia Municipal aprovou por unanimidade um voto de repúdio e condenação contra o racismo, subscrito por todas as forças políticas daquele órgão da democracia local, depois dos insultos racistas a Moussa Marega num jogo de futebol entre o Futebol Clube do Porto e o Vitória de Guimarães – incidente que imediatamente foi alvo de reprovação pelo Presidente da República, pelo Governo, por outros clubes de futebol, deputados e jogadores de renome do desporto internacional.

É nesta tensão que, com uma enorme responsabilidade neste âmbito dadas as suas atribuições e pelo seu papel central no combate às falsas narrativas hegemónicas e ao discurso de ódio, as instituições públicas e democráticas em Portugal navegam o momento histórico que se vive no mundo, marcado pelo tão adiado confronto entre a história das relações de poder que incluem a dimensão racial como categoria social, e a negação da realidade dessa história e suas consequências para o concreto da vida das pessoas racializadas, em pleno século XXI (confronto ilustrado de forma ela própria histórica pelo derrube, a ocidente, de estátuas de figuras ligadas ao colonialismo e à escravatura).

Um mundo em que há quem todos os dias tenha a vida em risco só pela cor da sua pele, é um mundo irrespirável. Um país onde se nega existir racismo é um país em que esse risco é exponencialmente maior. Quando se normaliza o racismo e o discurso de ódio, seja na comunicação social, no parlamento ou no quotidiano, agressores (e assassinos) creem-se legitimados, a si, ao seu ódio e aos seus atos. A morte de Bruno Candé não tem apenas um responsável. Tal como não o têm as agressões a Cláudia Simões e a Nicol Quinayas e as mortes de Luís Giovani, Nuno ‘MC Snake’ Rodrigues ou Alcindo Monteiro.

O ódio está entrincheirado nas estruturas que constituem a sociedade portuguesa. É legado do colonialismo, é herança do fascismo e é fruto da perpetuação de padrões de desigualdade de um sistema que estabelece por inerência os desígnios de quem não tem o privilégio como condição de partida. É sobre esta realidade que temos que nos manter vigilantes e contra ela que devemos lutar. Dentro das nossas cabeças, nas nossas casas, na rua, em espaços de ativismo e junto das instituições. Sem vacilar.