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Vai mesmo haver contratos para os trabalhadores das plataformas?

Não é habitual, mas aconteceu. A proposta de diretiva europeia sobre o trabalho em plataformas digitais apresentada esta semana foi saudada por sindicalistas e pela esquerda. “A impunidade da Uber, Deliveroo, Amazon e dos seus comparsas está finalmente a chegar ao fim”, celebrou o porta-voz da confederação europeia de sindicatos, para quem “as plataformas devem parar de espalhar mitos sobre a perda de empregos num esforço desesperado para salvar o seu modelo de negócio”. Deputados de esquerda também aplaudiram a iniciativa, considerando tratar-se de um passo histórico para pôr fim ao habilidoso “modelo de negócio” que estas multinacionais criaram para escapar a todas as obrigações patronais, para sonegarem as contribuições à segurança social e para fugirem ao pagamento de impostos nos países onde efetivamente operam.

Como se imagina, uma tal proposta de diretiva não nasceu da boa vontade das instâncias europeias. Na realidade, ela seria inimaginável há dois anos, quando em muitos países a proposta de regulação das plataformas digitais oscilava entre a consagração de um “terceiro estatuto” para os trabalhadores - nem contrato de trabalho por conta de outrem, nem estatuto de trabalhador independente, desobrigando as plataformas de responsabilidades empregatícias - e legislações à medida do lóbi das multinacionais, como aconteceu em Portugal com a desgraçada “lei Uber”, de 2018, que introduziu a figura do “operador de TVDE” para impedir legalmente qualquer contrato de trabalho com as plataformas. Ainda em julho 2021, o governo português chegou a apresentar uma proposta sobre “presunção de laboralidade” nas plataformas que referia a “salvaguarda de regimes legais específicos” (a tal lei Uber) e que previa a “presunção da existência de contrato com a plataforma ou a empresa que nela opere”, ou seja, propondo exportar para todo o universo das plataformas a perniciosa fórmula da “Lei Uber”, isto é, a possibilidade de um contrato não com a plataforma, mas sim “com a empresa que nela opere” (ou seja, as empresas unipessoais de quem trabalha ou as empresas que angariam os trabalhadores), isentando por essa via as plataformas propriamente ditas de responsabilidades patronais.

O que mudou?

Só que, entretanto, muita coisa mudou. Em vários países, um poderoso movimento de trabalhadores das plataformas, em particular motoristas e estafetas, começou a fazer caminho contra esta forma de “escravatura digital”, com organização coletiva, protestos, greves e ações para reivindicar o reconhecimento dos seus direitos. Esta batalha teve também uma viragem por via da jurisprudência. No último ano, face à análise concreta das relações estabelecidas entre estes trabalhadores e as plataformas digitais, muitos juízes rejeitaram o argumento das plataformas - que não existiria uma relação de trabalho subordinado. Decisão após decisão, arrasaram as pretensões das plataformas, obrigando ao reconhecimento de contratos de trabalho. Aconteceu em Inglaterra e no Estado espanhol, com sentenças de tribunais supremos. Mas também em tribunais italianos e holandeses. Ao mesmo tempo, foi sendo feito um trabalho nas instituições, entre a esquerda, sindicatos e movimentos de precários, que teve expressão, por exemplo, no “Fórum transnacional de alternativas à uberização”, que juntou no Parlamento Europeu mais de uma centena de estafetas de 18 países diferentes.

Em vários países, um poderoso movimento de trabalhadores das plataformas começou a fazer caminho contra esta forma de “escravatura digital”. Esta batalha teve também uma viragem por via da jurisprudência

Em Portugal, depois das conclusões do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, que iam no sentido certo no que às relações laborais com as plataformas diz respeito, e confrontado por uma proposta legislativa do Bloco que as acompanhava, o governo acabou por abandonar a sua posição de julho e reconhecer, em outubro, que o direito a um contrato de trabalho direto com as plataformas digitais devia passar a estar na lei.

O tema é da maior relevância para o futuro do trabalho. As plataformas digitais afastaram um conjunto de atividades das estruturas tradicionais do Direito do trabalho, da Segurança Social e da regulação coletiva das relações laborais, apresentando-se como meros mediadoras do encontro entre oferta e procura e tentando ocultar a subordinação e controlo do trabalho que exercem. De forma fraudulenta, enquadraram os seus trabalhadores como prestadores independentes ou como empresários em nome individual, tratando-os como empreendedores que se autogerem e excluindo-os da proteção social, dos limites de horários, das regras legais de remuneração mínima, do direito a férias ou da proteção em caso de acidente. Assim, operaram uma forma particular de externalização, o “crowdsourcing”, através da qual atribuem tarefas a uma multidão indeterminada e despersonalizada de trabalhadores disponíveis, ligados a uma aplicação. Ao mesmo tempo, esta externalização transfere para os consumidores-vigilantes a avaliação dos trabalhadores e recorre uma gestão algorítmica da atividade que permite novas e intensas formas de subordinação e de controlo, altamente opacas, eliminando os mecanismos de negociação entre trabalhador e empresa e subtraindo-se a qualquer regra de transparência. Assim, estas empresas obtiveram em poucos anos lucros estratosféricos, esquivando-se às mais elementares obrigações laborais, sociais e fiscais. Atualmente, segundo a Comissão Europeia, mais de 28 milhões de pessoas trabalham para plataformas digitais na Europa, prevendo-se que o seu número atinja os 43 milhões de pessoas em 2025. Entre 2016 e 2020, a receita deste setor económico multiplicou-se por cinco: de três para cerca de 14 mil milhões de euros.

O que traz de novo esta Diretiva?

Em primeiro lugar, cria uma presunção de laboralidade, prevendo uma lista de critérios para determinar se a plataforma constitui um “empregador”. Verificando-se pelo menos dois desses critérios, presume-se que a plataforma é uma entidade patronal, tendo obrigação de celebrar contrato de trabalho e passando a qualificar-se aquelas relações como trabalho por conta de outrem, com todos os direitos inerentes. Em segundo lugar, impõe obrigações de transparência na utilização de algoritmos pelas plataformas digitais, garantindo que as decisões algorítmicas são acompanhadas e permitindo que os trabalhadores as contestem. Em terceiro lugar, obriga as plataformas a fornecer dados aos Estados, não apenas para se saber quantas pessoas trabalham através delas, mas para garantir o pagamento de impostos e contribuições nos países onde operam.

Será que estes princípios e a sua formulação vão garantir finalmente o reconhecimento de direitos laborais? Para já, ainda não sabemos.

Os indícios de laboralidade têm de ser concretizados com muita atenção, para não deixar buracos na lei que permitam às empresas escapar às suas obrigações. Não deixa de ser estranho que a própria diretiva, ao mesmo tempo que estima existirem 28 milhões de trabalhadores em plataformas, preveja que o contrato de trabalho se aplique a apenas um em cada cinco desses trabalhadores. É certo que há plataformas muito diferentes e nem todas operam com serviços “on location” e com formas de subordinação, havendo algumas através das quais se faz verdadeiro trabalho independente. Mas serão estas uma tão esmagadora maioria? Em segundo lugar, uma diretiva deste tipo tem de ser transposta para as leis nacionais. E sabemos que, nesses processos, pequenos detalhes bastam para desfigurar belos princípios. Por fim, a eficácia das normas depende muito da capacidade de as fazer aplicar, ou seja, da atuação da inspeção de trabalho e da capacidade dos trabalhadores para exigirem o cumprimento da lei.

Esta será, sem dúvida, nos próximos meses e anos, uma das lutas mais importantes para impedir a desarticulação dos direitos do trabalho e travar uma das mais agressivas estratégias de exploração que estão em marcha. Deu-se um passo muito importante, mas a disputa permanece em aberto.

Artigo publicado em expresso.pt a 12 de dezembro de 2021