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As “novas classes perigosas” e o discurso moral da pandemia

Como tantos trabalhadores que nunca pararam durante a pandemia, Sofia Figueiredo, que ontem divulgou nas redes sociais duas fotos que se tornaram virais, tem de ir todos os dias para o emprego de metro. Tal como ela, há centenas de milhares de trabalhadores que nunca puderam “ficar em casa”, seja porque desempenhavam funções essenciais, seja porque, sendo trabalhadores informais e sem proteção, não tinham acesso a qualquer prestação social e, se parassem, deixariam de ter dinheiro para comer. Aconteceu com trabalhadores no setor da construção civil, com entregadores de comida das plataformas, com as trabalhadoras da limpeza, com as ajudantes familiares, com as assistentes operacionais dos lares… Os novos surtos, nomeadamente em Lisboa, não resultam de haver quem tenha transformado o desconfinamento numa espécie de farra ou da desacato individual aos conselhos da Direção-Geral de Saúde. Resulta, em muitos casos, das condições de trabalho, de habitação e de transporte de pessoas que trabalham em profissões que nunca tiveram sequer o direito de confinar.

 

Essas mesmas pessoas – a quem tantas vezes não se garantem salários decentes nem um enquadramento na segurança social que lhes permita ter apoios, que foram empurradas para transportes sobrelotados em carreiras que não foram desdobradas ou em empresas que cortaram linhas ao mesmo tempo que beneficiavam do dinheiro público ao abrigo do “lay-off simplificado” – estão agora a ser tratadas como se fossem culpadas. O enviesamento de classe é tal que a abordagem mediática e política passou de um tom em que “se dá conselhos à população” e em que “estamos todos juntos”, para uma lógica em que os problemas de saúde pública passaram a ser tratados como desvios morais dos pobres, com a polícia a mostrar o seu aparato nos bairros onde se fazem “festas ilegais” e onde há “gente nos cafés a consumir álcool”.

Precisamos de pôr mais comboios a funcionar, de arranjar desdobramentos rodoviários, de reforçar a resposta do metro, de garantir equipamentos de proteção nas empresas...

Quem vem da Amadora ou da margem sul de madrugada, em autocarros ou barcos à pinha, para limpar os escritórios de Lisboa, quem tem de apanhar o metro de manhã e viajar em carruagens a abarrotar, não está a desrespeitar normas – quem as desrespeita são as empresas de transporte e o Estado, que não garante as condições de segurança, de distanciamento e de proteção. Não precisamos, pois, de elocuções morais nem de tiradas racistas sobre a propagação do vírus. Precisamos de pôr mais comboios a funcionar, de arranjar desdobramentos rodoviários, de reforçar a resposta do metro, de garantir equipamentos de proteção nas empresas, de ter uma Autoridade para as Condições de Trabalho que fiscalize as condições de trabalho e de higiene e segurança nas empresas, de reabilitar os espaços onde a ausência de contacto é impossível, de dar oportunidades de realojamento a famílias cujas precariedade da habitação não permite as condições de salubridade e de dignidade necessárias, de alargar os apoios sociais a todas as pessoas que nunca puderam parar e que ficaram sem nada quando pararam.

E precisamos de fazer isso não pelo pânico classista que vem agora exigir medidas sobre realidades às quais nunca prestou atenção e que sempre estiveram lá, mas sim porque é um dever do Estado e da comunidade, porque estamos a falar de direitos humanos e do respeito pelas pessoas cujos quotidianos são normalmente condenados à invisibilidade mediática e social. Precisamos de fazer isso em nome de uma abordagem de saúde pública que integre a multidimensionalidade do problema e que reconheça que, como diria Abel Salazar, “quem só sabe de medicina nem de medicina sabe”. E precisamos de fazer isso já, dispensando o discurso moral que tresanda a elitismo contra o que agora alguns parecem querer retratar, à velha maneira do século XIX, como uma espécie de “novas classes perigosas”.

Artigo publicado em expresso.pt a 26 de junho de 2020