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StayAway Bloco Central

O Estado não pode perder a cabeça com os seus cidadãos mesmo que os seus cidadãos percam a cabeça.

O caso da obrigatoriedade da aplicação StayAway Covid e a deriva subitamente autoritária de António Costa, sempre reconhecido como um dos mais hábeis conciliadores, podem estar a abrir a jaula do animal político que começa por responsabilizar os portugueses pelo eventual falhanço da luta contra a segunda vaga da pandemia e acaba por responsabilizar a oposição à esquerda por provocar uma crise política ao recusar-se a ser conivente com a intransigência negocial do Governo.

Pela primeira vez desde que António Costa é primeiro-ministro, é nula a vontade de negociar com a oposição à esquerda que sempre viabilizou os seus orçamentos. Multiplicam-se as declarações de elementos do Governo dando conta da esperança em que as negociações com o Bloco de Esquerda e PCP cheguem a bom termo e clama-se pela responsabilidade para evitar uma crise em tempo de pandemia. Mas tudo o que se sabe dessas negociações adensa a ideia de que o Governo está apostado num tratado de intransigência e que aposta numa ficção sobre a inamovibilidade negocial. Estamos perante um simulacro. Se o Governo não tem qualquer vontade de encontrar consensos mínimos (ou de cumprir sequer com acordos já estabelecidos com o Bloco de Esquerda no Orçamento de 2020 sobre o número de médicos no SNS), António Costa parece apostado numa crise política para abraçar um novo Bloco Central.

O súbito endurecimento do discurso de António Costa está a conseguir criar forças de bloqueio e de ingovernabilidade que justifiquem o Bloco Central que Rui Rio sempre quis abraçar. Numa crise que se espera duradoura, fruto da recessão pandémica, numa altura em que não podemos antecipar sequer o decurso dos tempos mais próximos, uma posição securitária apontada ao centro do espectro político é uma visão tentadora para quem sabe que não governará com maioria absoluta a curto ou médio prazo. E assim cairão por terra muitas ou quase todas as conquistas e reposições de direitos que vinham a ser progressiva, sistemática e proporcionalmente conseguidas pelos acordos à Esquerda, grande parte delas alavancas da retoma económica, reequilíbrio e maior justiça social.

Quando se pensava que António Costa, à saída das últimas eleições, recusava acordos escritos de governabilidade com o Bloco de Esquerda para poder navegar à vista e jogar habilmente com intenções de voto e eventuais crises políticas que lhe fizessem cair nas mãos uma maioria, eis que se percebe que a tentação de olhar à direita era o verdadeiro plano B. Caso se concretize a rejeição do Orçamento do Estado, a responsabilidade da abertura de uma crise política é do Governo. Mas, como aqui escrevi na passada semana, António Costa parece viver agora numa falsa ilusão de segurança: a de que os portugueses não julgarão o Governo por não se importar de abrir uma crise política ao recusar negociar com quem quer que seja. Pelos vistos, pela primeira vez e estranhamente, António Costa está confiante de que comprará paz social pelo facto de ter descoberto um parceiro à direita que lhe serve de muleta.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 16 de outubro de 2020