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O centrismo é a derrota

Andra Mihali – Occupy socialism, Brooklyn Bridge, 1 de outubro de 2011. Alguns direitos reservados.
Andra Mihali – Occupy socialism, Brooklyn Bridge, 1 de outubro de 2011. Alguns direitos reservados.

O avanço do reacionarismo e do fascismo puro e duro não nos deve fazer recuar posições e aceitar o mal menor que o centro-esquerda oferece.

Este ano comemorara-se o centenário da Revolução de Outubro, num momento crucial, de aceleração da história, de profunda crise sistémica e de incerteza política na Europa. É, pois, tempo de refletir sobre os caminhos a seguir e, primeiramente, sobre como chegámos até aqui. Há dezoito anos o nascimento do Bloco assinalou um verdadeiro Começar de Novo de uma esquerda que estava em ruinas intelectual, politica e estrategicamente, devido à sua derrota histórica com que se fechou o século XX. A situação obrigava à construção de amplas alianças que englobassem diversos setores, uns revolucionários, outros reformistas, e variantes ecologistas e libertárias. Foi um verdadeiro “Juntar Forças”. Mas esse processo implicou transformar, progressivamente, no caso de algumas formações políticas do nosso campo, uma frente anticapitalista numa frente antiliberal tout court, deixando cair pouco a pouco partes essenciais de um programa da esquerda radical. Foi o que o Syriza fez em 2012 ao alterar o seu programa entre as duas eleições que se sucederam ou ao abdicar da saída da NATO uma semana antes da sua vitória em 2015: avançar eleitoralmente recuando programaticamente.

 

O avanço do reacionarismo e do fascismo puro e duro não nos deve fazer recuar  posições e aceitar o mal menor que o centro-esquerda oferece. Deve antes impelir-nos a abraçar posições assumidamente radicais e de rutura democrática. Não podemos aceitar a social-democracia como único horizonte político a médio prazo. Cabe-nos recuperar a chama da luta por uma Europa socialista. A uma extrema-direita crescente deve corresponder uma esquerda revolucionária firme e consequente. O objetivo continua a ser a construção de amplos partidos de massas que defendam os interesses da classe trabalhadora, mas para isso, a relação de forças interna é determinante. Argumentam alguns que o papel dos revolucionários nas frentes alargadas é impedir que as mesmas escorreguem demasiado para a direita. Contudo, a forte presença da Plataforma de esquerda de Lafazanis no comité central, no grupo parlamentar e no próprio governo não foi suficiente para impedir a assinatura do terceiro memorando e  a viragem neoliberal que Tsipras impos ao Syriza. Devemos, pois, retirar as devidas lições desse processo para que não se repita.

A questão das frentes populares é central, mas remete tragicamente para os anos 30. O seu objetivo de travar o fascismo falhou precisamente porque a social-democracia da época impediu que se avançasse para a Revolução social. O grande movimento de greves de Junho de 1936 em França foi abortado (com o apoio do PCF de Maurice Thorez, que ficou conhecido pela sua famosa frase, “é preciso saber parar uma greve”). As vontades de Blum em manter a “ordem republicana” contra a “anarquia” (leia-se manter a ordem burguesa) abriu caminho a Pétain.  Atualmente, o quadro geral é diferente porque a Revolução, como sabemos, não está ao virar da esquina. Contudo, se o partido-movimento foi essencial para garantir a existência e a sobrevivência de toda a esquerda (tendo em conta a viragem social-liberal dos PS’s), agora que o espaço que nos cabe ocupar é cada vez maior, devemos ser a garantia de um pensamento e de uma orientação socialista. Recuperar o Estado Social que a burguesia está empenhada em destruir por meio de sucessivas vagas de terapias de choque não a travará: só quando o campo revolucionário ganha a adesão de amplos setores populares é que o inimigo começa a ter medo, recua e concede algumas reformas. As várias bandeiras associadas a esse mesmo Estado Social só foram bandeiras do movimento operário na medida em que era a social-democracia que o liderava, com as consequências que hoje conhecemos. A centralidade da luta socialista é, então, uma condição sine qua non para o própria construção desses partidos de massas, sendo que a amalgama e a dissipação das fronteiras que historicamente nos separam dos que defendem a conciliação de classes podem levar à destruição do que até aqui construímos e a um beco sem saída, como o exemplo que se segue procura demonstrar.

Este ano realizam-se eleições na Alemanha e começa a discutir-se sobre um governo alternativo ao de Merkel, uma geringonça alemã que englobe Die Linke, SPD e Verdes. O grande impulsionador de tal aliança no seio do Die Linke é Gregor Gysi, recentemente eleito líder do Partido da Esquerda Europeia, figura que com posições controversas em relação a Israel, à NATO, à “reforma” da União Europeia,  defensor assumido do exército europeu e da aliança a todo o custo com o SPD e que apelida constantemente de sonhadores e utópicos todos os que dele discordam, tendo atacado violentamente a Unidade popular quando esta rompeu com o Syriza. Se tal governo tomar forma, as consequências serão gravosas e arrasadoras para toda a Esquerda. Martin Schultz prosseguirá com a política belicista da Alemanha e continuará a impor políticas de austeridade aos países do sul e às classes populares. O Die Linke não será mais que um peão nas mãos da direita, e a extrema-direita passará a ser o único voto de protesto contra o sistema. Perante tal deriva, que tem vindo a ser preparada e a ganhar forma nos últimos anos, a ala esquerda do partido não tomou uma posição de repúdio absoluto de tal caminho nem apresentou um caminho alternativo. A saída, a esperança está em transformar o Die Linke num partido de massas que crie condições para a disputa do poder com a grande aliança SPD/CDU e que chegue primeiro que a AfD e não em transformar-se na ala esquerda do sistema. Percebemos hoje que o perigo, mais do que a viragem reformista que se verificou em partidos como o Labour e o SPD nos anos 20, é a viragem liberal que ameaça a esquerda de hoje e a impele a escolher com pertinência e sentido tático as suas alianças atuais e futuras. O trabalho revolucionário, em cooperação com os sindicatos de classe, a radicalização da luta, a construção de poder popular e a primazia da luta na rua e nos locais de trabalho sobre o eleitoralismo são elementos vitais para os marxistas se queremos evitar a derrota continental e manter alta a bandeira da dignidade dos povos que resistem. Para que não deixemos de caminhar. E como afirmou a camarada Zoe, “para que os sonhos tenham a sua desforra”

Maio de 2017