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Covid e Cultura: que fazer com um bem de primeira necessidade?

Ainda antes do estado de emergência e das medidas de confinamento aplicadas à maioria, já os trabalhadores da cultura estavam a ver o seu setor profundamente afetado. Com a proibição de concentração de pessoas e o encerramento das salas de espetáculo, rapidamente o que estava programado foi cancelado e o setor paralisou.

Quer dizer, nem tanto. Em condições adversas, multiplicaram-se exemplos de de autores e artistas que, a partir de casa e utilizando as redes sociais, disponibilizaram gratuitamente textos, músicas, interpretações, migrando para o online a comunicação com o seu público. São conhecidas as dezenas de pequenos concertos e grandes festivais organizados neste registo à distância, de projetos que passaram para as varandas, de momentos de encontro em que se conseguiu combinar uma certa intimidade do lado de lá com uma grade plateia dispersa por milhares de computadores do lado de cá.

E no entanto, o facto é que não é possível transferir para teletrabalho a criação coletiva e o trabalho técnico, os ensaios e muito menos o que faz a singularidade do espetáculo ou do concerto enquanto encontro: a co-presença física.

Além disso, quem trabalha nas artes e no audiovisual também tem de pagar a comida, a água, a luz e a renda de casa. Esta crise apanhou-os numa situação particularmente frágil. A maioria depende de atividades entretanto canceladas e trabalha em condições de intermitência, a passar recibos verdes ou através de micro-empresas em que são muitas vezes, ao mesmo tempo, os sócios-gerentes e os únicos trabalhadores.

O Governo anunciou algumas medidas, no sentido de os espetáculos cancelados serem reagendados e de permitir - mas sem estabelecer como regra esse procedimento – que as entidades públicas mantenham os pagamentos aos artistas e técnicos. A Direção-Geral das Artes anunciou que manteria o calendário dos apoios previstos, mesmo que as estruturas não pudessem realizar as atividades planeadas, e que disponibilizaria um milhão de euros para uma linha de apoio de emergência. Os Teatros Nacionais e a OPART comprometeram-se a pagar aos artistas e técnicos pelos espetáculos programados. E algumas entidades do próprio setor meteram os pés ao caminho, como a GDA (cooperativa que faz a Gestão dos Direitos dos Artistas), anunciando um gabinete de apoio e a distribuição de direitos, antecipando assim algum dinheiro a autores e intérpretes.

Tudo isto é importante, mas não chega.

Para responder a quem dedica a sua vida às artes e se vê agora sem rendimento é preciso intervir no imediato em pelo menos três dimensões, além de se preparar o futuro.

Creio que a primeira exigência é com as entidades públicas (nacionais ou autárquicas) e com os organismos que têm financiamento público (fundações, como a Casa da Música, o CCB ou outras). Espetáculos adiados ou cancelados, bem como atividades de mediação e serviço educativo contratado por estas entidades devem ser pagos na mesma, até porque estavam orçamentados. O facto de não se realizarem não traz prejuízo: na esmagadora maioria dos casos não dependem da receita da bilheteira. Isto mesmo deve ser determinado pela lei. Não pagar integralmente estas atividades seria estranho: significaria que essas instituições estariam a constituir uma espécie de excedente orçamental devido ao Covid-19. Este princípio deve valer não só para artistas, mas também para os técnicos, para os contratos assinados e para o que já estava planeado e até anunciado, mas ainda sem ter sido formalizado contratualmente, e tem de se garantir que o dinheiro chega aos artistas sempre que haja intermediários. Nos casos em que se reagende, pelo menos metade do dinheiro tem de chegar já às pessoas, porque é agora que está a faltar.

Uma segunda dimensão da resposta prende-se com a proteção social. Poucos são os trabalhadores deste setor que vão conseguir aceder a medidas como a “suspensão do contrato” (que implica que ele exista) ou o subsídio de desemprego (que implica, além do contrato, um prazo de garantia: 360 dias de descontos nos últimos 2 anos). Alguns conseguirão beneficiar do apoio à família previsto para os trabalhadores independentes e outros caberão nos critérios do apoio excecional para recibos verdes que ficam sem rendimento, que em todo o caso os colocará numa situação de pobreza (o valor máximo previsto é de 438€, mas muitos nem a esse valor terão direito). Há uma parte a quem só restará o Rendimento Social de Inserção, cujas condições de acesso são apertadíssimas e cujos procedimentos demoram tempo de mais (tem de se estar um mês inteiro sem qualquer rendimento para ter direito, e esperar mais dois ou três pelo processamento).

Neste campo, parece-me haver três urgências. 1) Puxar pelo valor do apoio aos independentes: 438€ tem de ser o valor mínimo e não o máximo. 2) Facilitar o acesso às prestações que já existem, reduzindo para metade os prazos de garantia para o subsídio de desemprego e determinando o deferimento automático do RSI (por que razão um mecanismo de confiança na simples declaração e de celeridade na atribuição, com posterior verificação, que é o que se está a fazer com as empresas no lay-off simplificado, não haveria de valer para cidadãos que ficaram sem rendimento?). 3) Criar prestações novas, extraordinárias e temporárias, para quem ficou sem trabalho e não tinha descontos suficientes, ou era auto-empregado, como acaba de ser feito em Espanha.

A terceira dimensão da resposta é pensar o que pode ser a continuidade de estruturas, equipamentos e da intervenção cultural em tempos de confinamento. Um reforço orçamental para a Cultura é tão importante como o que está a haver noutras áreas. 10% do Orçamento do Ministério já seriam 50 milhões a mais – faz diferença. Para pagar salários, adquirir livros, adquirir obras de arte, não deixar cair as estruturas semi-profissionais. Por outro lado, é uma boa ideia que haja candidaturas para apoiar diretamente projetos online e à varanda e processos que aproveitem estes tempos sem apresentações públicas para o estudo, a escrita e o arquivo. É claro que a solução para o futuro imediato não é colocar novamente as pessoas a competir por apoios escassos com candidaturas complexas. Mas se a criação cultural se adaptou a tempos extraordinários, também os apoios públicos devem fazê-lo.

Em contexto de emergência, não julguemos menos relevante a resposta à cultura do que a que damos a outras dimensões da nossa vida coletiva. Pelo menos, se estivermos disponíveis para pensá-la como bem de primeira necessidade, como cuidado com o que somos, como possibilidade de nos imaginarmos para lá do confinamento.

Artigo publicado em expresso.pt a 3 de abril de 2020