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Asas e penas

Há quem assegure que existe uma esperteza padrão, aparentada do desenrascanço, tipologia chico-esperto, uma espécie de paliativo para nódoas negras eventuais só ao alcance dos sobreviventes.

Mas lidar com o regresso à vida de uma comunidade pressupõe muito mais do que a vontade individual de regressar ou um conjunto de oportunidades de retoma em versão "low-cost".

A percepção de cada um de nós sobre as decisões que são para todos funda a dimensão do regresso à normalidade e acrescenta superação. É preciso confiança. Mas não nos podem pedir superação ou confiança quando se percebe a incapacidade de ler o mundo no primeiro instinto de quem decide. Ou então, pior ainda, indiferença ou premeditação.

A administração da TAP violou grosseiramente os mais elementares deveres de bom senso e de respeito pela coesão territorial. Não pode esperar, agora, ser capaz de convencer alguém de que ainda é capaz de ler a realidade com o mínimo de equilíbrio. O processo de "confinamento à inexistência" do Aeroporto Sá Carneiro, por mais que se pretenda desmanchar o enxoval, foi mais um triste episódio do deslumbre que alguns iluminados conseguem fazer casar com a sua irresponsabilidade.

Não fosse o levantamento de toda uma região e de uma parte do país que se quer uno, seríamos todos "lesados da TAP". Era mesmo verdade que se pretendiam manter mais de 70 rotas no aeroporto Humberto Delgado e apenas três com partida do Porto. O plano para eliminação de rotas existia e, apesar das denúncias públicas, foi anunciado sem qualquer vergonha ou timidez. Reafirmo que, sendo tudo tão obviamente desproporcional, disfuncional e assimétrico, tem que esconder uma agenda.

Um "mea culpa" sem asas de voo. Após ter tido a coragem de ignorar todas as denúncias e apelos para rever o seu plano de retoma de rotas, a TAP faz marcha atrás e assegura agora querer "viabilizar o maior número de oportunidades" no intuito de "adicionar e ajustar os planos de rota anunciados" sem esquecer "todos os aeroportos nacionais onde a TAP opera". Uma ladainha calcária que só a pressão poderá desfazer e tornar realidade. A administração da TAP que agora pretende vestir asas de cordeiro, foi a mesma TAP que - há 15 dias e em carta assinada pelo COO da empresa - sugeria aos seus pilotos para pedirem a transferência definitiva para a base de Lisboa. Como aqui escrevi recentemente, a TAP quis confinar o Norte. Sabemos agora que, não contente com isso e como parte do plano, sugeriu um teste de mobilidade geográfica aos seus pilotos para efeitos de uma "aplicação mais abrangente do conceito de senioridade". Como cantava Jorge Palma na abertura de "Asas e penas", "até mais não poder ser". Dúvidas houvesse...

Artigo publicado em “Jornal de Notícias” a 29 de maio de 2020